Porque não há mais música na TV portuguesa?

Strobe

Tirando talent shows como The Voice ou Ídolos, o cenário é bastante desolador.

Imagem: Isaura & Francis Dale
Vou começar por dar a resposta à pergunta do título e depois passar para as razões: porque um bom programa de música não faz necessariamente boa televisão.

Quando assisto a um formato televisivo relacionado com este tema, tenho a sensação de que a música acaba por ter um papel secundário – ou pior – quando comparado com outros factores que são essenciais para as estações de televisão como audiências, captação de espetadores e entretenimento puro e duro. É ligeiramente perverso reparar que uma arte é manipulada para efeitos económicos, mas se calhar também é um factor inegável nos dias que correm. Tempo é dinheiro e dinheiro é essencial, seja em que área for. Comecei a pensar neste tema quando assisti à seguinte situação que passou no programa Ídolos da SIC.

LUÍS TRAVASSOS - CASTING 03 - IDOLOS > youtu.be/jTWd5roK570

À parte do talento do rapaz ou falta dele, a grande questão que este vídeo coloca é: que tipo de programas musicais temos à nossa disposição nos quais a música tem realmente um valor acrescentado para o espetador? Muito poucos.

A música como karaoke das noites de sábado e domingo

Vejamos o que tem acontecido nos últimos anos com o Ídolos. Trata-se de  um talent show onde se procuram vozes, caras, personalidades que se distingam pela qualidade, talento, energia e que sejam capazes de cativar milhares de portugueses, através da música. Vende-se uma espécie de sonho americano, tão apelativo como o conceito que conhecemos tão bem.

Olhando para o programa com uma perspetiva crítica, apercebo-me que o sonho americano está bastante longe da realidade. Grande parte do que ouvimos hoje em dia é “fabricado” com fórmulas de sucesso – estudadas e comprovadas – que o ouvinte não compreende à primeira, mas sente como uma droga. As músicas pop são o melhor exemplo disso, sempre foram. Vender é uma palavra chave e é o que os jurados procuram no Ídolos: alguém que seja talentoso no uso da sua voz, associado a uma cara apelativa com o principal intuito de comercializar.

Mas será que vende mesmo? Que os sonhos de um concorrente se concretizam?

Imagem: Diogo Piçarra
Vejamos os factos.

Na primeira edição, o vencedor foi Nuno Norte. Lançou um álbum a solo sem sucesso, juntou-se aos Filarmónica Gil como vocalista e criou a Banda Sal. Uma carreira pós-Ídolos que deixou muito a desejar. Em 2004, quem ganhou o prémio foi Sérgio Lucas. Com uma carreira longa na música, lançou dois álbuns, fez várias peças de teatro e musicais e ainda hoje estou à procura dos trabalhos dele numa qualquer prateleira da Fnac. Tal como Nuno Norte, participou no Festival da Canção (mais um concurso que não tem ponta por onde se pegue). Na terceira edição, a competição esteve renhida entre Filipe Pinto e Diana Piedade. Os dois artistas chegaram à final com o apoio do público e foi o jovem que levou a taça. Ganhou em 2009, lançou um álbum em 2012, ou seja, demorou três, quatro anos a lançar um trabalho, perdendo todo o buzz ganho durante o programa. Acabou por ter algum sucesso com o lançamento de um videoclipe e da cover dos Ornatos Violeta que fez durante o programa. Hoje em dia, não sei onde vai tocar nem quando. Chegámos à quarta edição. Ganhou a Sandra Pereira. Quem? Pois…

Em 2012, foi Diogo Piçarra o vencedor e finalmente viu-se uma ligeira mudança. Dedicado à sua arte, lançou este ano o primeiro trabalho Espelho com bastante sucesso, fruto da qualidade das suas músicas, da dedicação do público e de bom marketing (essencial nos dias que correm). No mundo dos programas televisivos de karaoke, o jovem foi um dos poucos a ser capaz de se afirmar como uma estrela pop em Portugal, sem cair nas tendências simples ou registos banais. Ao contrário de todos os outros vencedores antes dele, Diogo parece ter uma noção do que quer fazer da sua carreira e de que modo pode alcançar os seus objetivos, fugindo ao conceito de ídolo pop que tanto procuram no Ídolos. É justo dizer que o rapaz não é o único caso de sucesso, já que Luísa Sobral e Carolina Deslandes têm tido bastante sucesso ao longo dos anos (mais, mais um vez, fugindo à imagem e sonoridade com que se tenta molda o próximo ídolo nacional). São artistas que usaram os 15 minutos de fama para chegarem a outros voos e foram capazes de encontrar a sua própria voz, afirmando-se em nome próprio, com o público a apreciar o que fazem. Não sei se hoje são ídolos per si como desejavam ser quando participaram no programa. Acredito que são mais que isso, são reais. O público apercebe-se dessa diferença.

 

O mesmo se passa com outros programas semelhantes, como a Operação Triunfo, de onde saíram talentos como Isaura e Filipe Gonçalves, que só agora estão a dar os primeiros passos em carreiras inteiramente baseadas nas suas ideias e conceitos.

Então que conclusão se retira?  

Um concurso como Ídolos parte de uma premissa imaginária: encontrar o próximo ídolo de Portugal. Não um músico mas outra coisa completamente distinta e essa distinção é crucial. O rapaz do vídeo diz a certa altura: “penso que o facto de ser original é talvez a melhor forma de um ídolo se sobressair”. Ora não é que ele disse tudo? Com convicção, Luís definiu a essência de um artista: originalidade. Ter a sua voz. É assim que um artista se distingue, se respeita. Exatamente o oposto do que é pretendido no Ídolos.

Nos últimos anos, a música na televisão resume-se a isto. A talent shows fúteis que acabam por empurrar ainda mais para baixo o estado desta arte, que já anda cansada de falta de exposição televisiva e não é por falta de talento.

Neste momento, estamos num dos melhores períodos criativos da música nacional de que me recordo.

Várias bandas e artistas põem trabalhos cá fora com enorme valor, conquistam públicos, vão a festivais de verão. Nomes como HMB, Peixe:Avião, Orelha Negra, Batida, Salto, Capicua, Diabo na Cruz, D’Alva, Best Youth, Márcia, Frankie Chavez, entre tantos outros. Mas volto a colocar uma pergunta: onde está o espaço deles na televisão? Não está. Podemos dar graças a Deus pela rádio e pela internet porque, se não fossem por esses dois veículos de comunicação, não saberíamos de muitos talentos portugueses nem eles iam ser capazes de se expor ao grande público.

Imagem: Diabo na Cruz

O que temos para ver?

Se não me engano, atualmente existem três programas relacionados com música: Portugal 3.0, Autores Fora D’Horas e Autores. Com os dois últimos a terem mais semelhanças a nível de estrutura, há um pormenor interessante que une os três: o facto de que, quando recebem músicos, eles tocam ao vivo e isso é algo que não se vê há muito muito tempo. Tem custos? Tem. Vale a pena? Sim mas não acontece tanto como seria de esperar. É raro assistirmos a programas de música que contenham música ao vivo. A maior parte da realidade televisiva nacional deixa de lado uma grande fatia da nossa cultura musical, com um desprezo que também parece ser aceite pelos artistas, diga-se. Não se vê uma exigência mais vincada por parte de quem faz boa música neste país de querer mostrar todo o talento que tem quando vão à televisão. Contentam-se com a exposição, quando a têm. Estes três programas mostram como se consegue fazer boa televisão sem grandes gastos, explorando o que de melhor se produz no nosso país, com conteúdos interessantes e uma perspetiva vanguardista da nossa cultura.
 

Então e o que ficou para trás?

É importante relembrar que durante muitos anos tivemos vários programas que realmente tratavam a música portuguesa com o respeito que ela merece. Personalidades como Júlio Isidro, Henrique Amaro, Sofia Morais e José Pinheiro foram cruciais para a evolução de uma arte que ganhou novos horizontes nas décadas de 70 e 80. Programas como Popoff, Deixem Passar a Música, Top +,A Vez e a Voz, Passeio dos Alegres, Roques da Casa ou Viva a Música deram espaço para que a música nacional ganhasse uma projeção enorme. Ao longo dos anos, esses programas acabaram por desaparecer sem surgirem outros que fosse capazes de os substituir.
 
Recentemente, apareceram alguns que morreram na praia. Lembro-me do Planeta Música da RTP 1, que tinha um conceito inovador e arrojado e que acabou despromovido como um clube da segunda liga para um escalão ainda mais baixo. Constantemente mudado de horários, morreu devido às fracas audiências. Mais antigo que isso, o CC Estúdio 2, onde vi pela primeira vez David Fonseca a solo ao vivo. As acusações de elevados custos técnicos e novamente as baixas audiências acabaram por ditar o fim do programa. É sintomática a ideia de que vivemos numa altura extremamente capitalista onde o lucro dita o sucesso de algo.
 
Recentemente, o realizador José Henrique – um dos elementos centrais de Popoff que vai voltar à televisão, na RTP Memória – resumiu as minhas ideias em duas frases. “Falta a música ser bem tratada na televisão portuguesa. Não é associando-se a uma marca comercial que organiza um festival que uma estação de televisão cumpre a sua missão de apoiar as artes em geral e a música em particular”, mencionou.

Se calhar está na altura de exigirmos mais do que vemos e ouvimos. Também merecemos ter um Jools Holland, não?